Alguns movimentos levam a gente de encontro à natureza implicada e marcam uma fronteira, bem longe, com aquilo que é explicável.
Cento e vinte e dois quilômetros de estrada, música e temperatura agradável, eu na minha versão melhor companhia. Naquela manhã de sexta-feira, o meu carro quebrava a monotonia das retas, em direção a uma cidade, no interior de São Paulo. A medida que os quilômetros seguiam, a memória insistia em trazer a lembrança da fase ingênua da minha vida e, entre um radar e outro, entregava uma cena da infância dos meus filhos, onde eu vivi a hipnose do “isso é a maior alegria da sua história” e deixei de lado qualquer questionamento ou vontade que não combinasse com a minha dedicação materna.
Talvez os nós tenham começado por ali e se avolumaram, sem eu me dar conta, ao longo dos anos; vinte, no total. Alguns quilômetros mais, e o que era um caminho livre ganhou o incomodo das coisas não resolvidas. Aumentei o volume do rádio; a voz de Tim Maia cantava “Você é mais que pensei, é tudo para mim, é mais que eu esperava, baby… sou feliz agora..” . Como um bom disco de vinil riscado, cantei bem alto, em um dueto com ele, nos quilômetros que se seguiram para chegar ao meu destino.
Não demorou muito para o GPS anunciar o sucesso da sua missão. Estaciono o carro, na sombra de uma árvore e, atenta a recomendação de que aquele lugar era perigoso, desço rápido. Vou de encontro a capela. Os muros do lado de fora, anunciam o poder da padroeira, com o agradecimento de devotos encapando toda a superfície de tijolo aparente. Um canteiro bem cuidado separa o café, de uma loja e da rampa de acesso a entrada principal. No caminho, torneiras garantem o abastecimento de água para a benção do padre. Duas amigas chegam, logo depois, e vamos juntas reforçar o cordão iluminado com velas, próximo ao altar.
Nesse instante, um espaço de silêncio expulsa os meus pensamentos. Observo as velas acesas, o vai e vem da chama, as cores, a fé, e depois de algum tempo, como uma simbiose, eu sou a vela e todos os meus pedidos. Pude sentir as tramas, traumas, nós, e emaranhados se soltando, com a facilidade como desfazemos uma teia de aranha. O escuro talvez seja o lugar propício para os nós acontecerem e aprisionarem uma ingênua distraída, como eu. Aos poucos, as mais de duzentas velas se juntam à minha chama e uma lucidez acende novos caminhos, novas possibilidades. Eu me emociono e agradeço.
Era a hora de voltar para casa. Me despeço das minhas amigas e sigo para o carro. Encontro o capô lotado de uma frutinha roxa, do tamanho de uma azeitona e, antes de alcançar o primeiro grão, do que poderia virar uma mancha na lataria, um senhor se aproxima. Acho que a luz que eu recebi na igreja me deixou cega para o perigo. Onde já se viu salvar o capô e descuidar de mim? Não dá tempo de fazer nada a não ser ouvir o senhor dizer: “Moça, deixe as frutinhas; faz de conta que cada uma delas é a confirmação de um pedido. Existem manchas muito piores que essa, saia logo daqui, ordena.
Aceno um sim tímido, com a cabeça e corro para dentro do carro, com medo do meu coração sair pela boca. Na estrada, observo as frutinhas grudadas no capô e valorizo as vinte uma que eu encontro. Vinte desde o inicio do embaraço e uma por sair em segurança daquela rua.